14/03/2009

Sobre a campanha de Doritos.

Claro, também falo algo. Então. Algumas coisas me preocupam. O destino da propaganda, publicidade, enfim, disso que a gente faz. O que é que a gente faz? Ainda acreditam que a gente vende calças jeans. Que a gente vende biscoito. Que a gente vende perfume e refrigerante. Que a gente vende políticos e ganha eleições. A gente não vende nada disso. No more. A gente não vende mais nada. A gente é espelho. A gente reflete o que chega pra gente, da sociedade, do consumo, da escola, da família. Esse negócio que chamamos mundo. E aí eu lembro daqueles espelhos de parque de diversões, que muita gente, hoje, acho que nunca viu. Mas os espelhos de parque de diversões fazem assim: um reflete a imagem da gente mais gordo. Outro, mais alto. Outro, mais magro. Outro, anão. E a brincadeira é essa. Que a gente sabe e vai pra sala de espelhos para rir e ridicularizar a gente mesmo, e sai de lá pensando “que ridículo eu seria se fosse anão” (ou gordo, ou alto, ou magrelo). Então, Doritos. E o espelho com a logo Doritos na lateral mostra como somos, sem a gente perceber como realmente somos. E muita gente acha graça, porque o espelho está mostrando uma aberração que não somos nós. A gente acha que não somos nós. E é esse o perigo desse negócio que nós fazemos. Publicidade, propaganda, algo assim. Porque a gente não sabe (ou, finge) que está no grande parque de diversões que é a televisão. A gente não sabe (ou finge) que o preconceito travestido faz seu trottoir nas casas de milhões e milhões e milhões de iletrados, analfabetos, depravados, castos, libertinos, homofóbicos, gays, machistas, cultos, influentes, zés-ninguém, feministas, gordos, cegos e etc, etc, etc etc. E o espelho, disfarçado de humor e de gracinha, reflete e reforça o que achamos que somos. Porque a gente não pagou ingresso pra se divertir. A gente não sabe que aquilo ali é uma deformação propositada. Aí, a gente aceita e entende que é aquilo que somos, e diz que é assim mesmo e que não tem nada demais. Aí, sobre o politicamente correto. Que é chato, mesmo. O patrulhamento, que é chato, mesmo. Sobre a histeria, que é chata, mesmo. Mas a gente acha que quando é o outro quem reclama, é porque é um chato do politicamente correto, ou um dinossauro mal-humorado, ou um viadinho histérico. E, o outro, na verdade, é o ofendido. De Alex, o LLL: “quem sabe da ofensa é o ofendido”. O outro, na verdade, é quem nós não vimos porque o riso ajuda a reduzir a área de visão e não enxergar que alguém é ou foi feito de palhaço para nossa diversão.Então, não se trata só de “politicamente correto”. Se trata de foco correto. Ou, traduzindo: de se adotar não o chato “politicamente correto”, mas o correto. De lembrar que a gente reflete, e que a gente pode escolher o que refletir. A gente pode refletir os valores mais elevados ou os valores mais rasteiros. A publicidade (ou propaganda, who knows?) tem de lembrar que, em países, digamos, como dizer, como o Brasil, grande parte dos valores que a sociedade carrega vem da televisão e da própria publicidade (propaganda, who cares?). Então, somos, sim, responsáveis. Somos, sim, obrigados a pensar no outro, e parar de fingir que não tem nada demais. A gente tem de parar de acreditar que “puta merda, somos muito descolados e não temos preconceito, a gente só quer fazer coisas engraçadas”. É tão fácil. Ou a gente pode fazer outra opção. A de continuar acreditando que a nossa única função é vender calça jeans e biscoito horroroso tentando ser funny. E a gente pode continuar ajudando pessoas a se elegerem, seja quem elas forem, porque a gente vende sabonete. E a gente pode continuar a enfiar saco de Doritos na cara dos outros porque dançam YMCA ou cantam Like a Virgin. Claro que a gente pode. Você decide. E, quem sabe, até pode dividir isso com os amigos, né?

15 comentários:

Natália Hissë disse...

legal o poster

Anônimo disse...

Não sei. Entendo toda essa coisa de politicamente correto, da ofensa ser sentida por quem sofreu a ofensa, dessa coisa de ser deliberadamente 'funny'...
Mas... vejo mais a coisa do espelho, da propaganda como reflexo do que já é, do que já existe.
Eu, por exemplo, não vi um gay. Eu vi um garoto mais novo do que o resto das pessoas que estavam no carro, dançando uma música que eu adoro dançar brincando, que outros amigos meus, héteros ou não, tbm dançam brincando... Achei funny. E eu talvez nem tivesse visto a propaganda se não tivesse causado tanto alarde...

Juliana Sampaio disse...

Oh! Obrigada, obrigada, obrigada! Melhor post sobre o assunto, que agora finalmente tá encerrado pra mim. Ainda existe vida inteligente por aí. Obrigada.

Fred disse...

Cara, como um publicitário (ou propagandista, sei lá) que renegou a profissão, sou obrigado a dizer que seu post é incrível. A publicidade é toda cheia de pressupostos horríveis mesmo, esse é só um exemplo. Parabéns pelo post!

baras disse...

Muito barulho por nada. Que é o que a publicidade é. Nada. Espelho? quantos espelhos nos miramos por dia? Quais realmente importam a mim? A grande manada também faz seus julgamentos, mas acho que uma propaganda mequetrefe e isolada com esta não muda e nem reforça sentimento nenhum.

dddd disse...

Algumas coisas são preconceituosas... outras são desnecessárias. :)

André Gonçalves disse...

Natalia: obrigado!

Arianne: é só você ir atrás de entender o que significa a música YMCA, o quanto ela é identificada com o publico gay, etc, etc. aí voce vai entender os porques. e, se era pra ser um "mico", porque não Sandra Rosa MAdalena? No mínimo, comeu mosca, a agência.

Ju: Sim, tem vida inteligente por aí. Em Júpiter, talvez, e em um ou outro ponto da Terra.

Klein: a gente tem de mudar a publicidade. tem sim.

Baras: Espelho. É sim. Preste atenção.

Danilo: isso. no mínimo, desnecessário.

Anônimo disse...

Pois é. Aí que tá. Eu praticamente vivo no mundo gay, já cantei a música inúmeras vezes e adoro Village People.
Sem dúvidas, a agência errou em não pensar nessas possíveis reverberações.
Mas eu continuo achando funny.

Anônimo disse...

E eu não acho a propaganda boa. Odeio Doritos e não é legal saco de Doritos na cara de ninguém.
O que eu acho funny é o cara ter que ser gay só porque tá dançando YMCA.

aline disse...

nossa, que texto bom.
vou ficar um tempão pensando nele.

obrigada, e parabéns.

Alline disse...

Vi pela primeira vez aqui. Não achei graça. Era pra ter graça mesmo?

No funny at all.

Unknown disse...

essa foi a melhor e mais honesta maneira de dizer que somos exatamente como a campanha essa e vaaaarias outras. e agente pode ver isso de varias maneiras: podemos ser os preconceituosos em segredo - como somos todos os brasileiros - ou os que acham esquisito tudo o que eh diferente. nao importa. vc ve como vc quiser. eh como se escolhesse o espelho onde vc ficou melhor. e ponto. sai do parque de diversoes com as mesmas ideias, os mesmos habitos.
adorei os seus espelhos.

Bela disse...

Esse povo ta se inspirando em gracinhas mequetrefes norte-americanas...tem toda a cara ( donde herdamos tantas outras mazelas, entre elas o novo bulling!).
Eu fiquei indignadíssima! Que alívio ler esse post!
argumentação clara, direta, inteligente, sensível e CORRETA!
Amém!

Srta.T disse...

Bacaníssimo o post, de verdade.

Anônimo disse...

Talvez o seu discurso tem como reflexo os próprios comentários. Vi outro dia uma fala de Andrew Keen, que dizia :um acúmulo inabarcável de tolices criadas por uma multidão de narcisistas ansiosos para se expressar on-line.

As leituras desse comercial são infinitas(ponto!)