24/09/2007

cannibalis

da poesia
congelada
quero só o que escorre
pelas frestas
pelas bordas
pelo ralo
pelas costas

deixa intacta a letra morta
deixa o corte
fecha o lacre
deixa o corpo
esconde as sobras
dos famintos
cães da noite

da carne avermelhada
quero um pouco do suor
quero só o que importa
polpa fresca
intemperada
fibras mortas
devoradas

da poesia
quero o sal
quero o gosto
a mordedura
até que o vento
doure os nervos
e a mandíbula proeminente
solte o verbo
morda a língua
e engula a dor presente.
Hanna Barbera

diz uma coisa,
só para que eu não erre:
nessa estória de nós dois
quem é o Tom?
quem é o Jerry?
As Várias Faces de Jackie S. - Face 3: A Sincrética

Jackie S. abraça sua paket enquanto tira da língua 19 alfinetes oxidados e embebidos em curare. Sempre acreditou que os cientistas loucos da Colômbia é que têm razão: o principal órgão do aparelho reprodutor bombeia quatrocentos litros de sangue por hora dentro de seu corpo, que pesa pouco mais de uns poucos sonhos. Daí, a dúvida: São Sebastião (que conheceu em uma noite molhada de vodka em Milão) ficaria mais feliz com El Greco ou Botticelli? Jackie S. lembra que uma vez mastigou a hóstia e fechou os olhos esperando a punição que quase nunca vem do Alto, senão de dentro. ?Ilaya 'alal falaah, Ilaya 'alal falaah?! E a ferrugem penetra no sexo em movimentos de vai e vem, como se a dor purificasse o espírito. Irene às avessas. Santo, santo, santo, que em verdade vos digo: quem, senão ela mesma, poderia assim desfalecer de ardor perante o altar dos olhos dele? Jackie S. não crê, mas acredita. Não vê, mas assiste. E, a cada estocada no fundo da carne trêmula, descobre que nada, ninguém, nenhum, é mais do que o peito que bate dentro dela. Glória, glória, o tantra de Yamantaka trabalha com a transmutação do ódio que reina por todo o seu caminho. Mas Ele é o pai que ela nunca teve. Jackie abraça a paket, que chora. Paz. Três dias e Jackie S. descobre que, sem a cruz, a Ressurreição não teria sentido. Está consumado.
As Várias Faces de Jackie S. - Face 2: A Irresoluta

Jackie S. sangra na bochecha direita, arranhada pelo tombo do alto do muro de suas convicções. Um muro de plumas e penas de ganso e nuvens de dia de céu claro. Jackie S. carrega no peito uma bússola que, estranhamente, afirma que o Norte é para cima e o Sul está abaixo dos seus pés (só que um pouco mais à esquerda), e por isso tem vontade de fazer de tudo ou muito de quase nada, muito bem feito. Houve um dia, incerto tempo atrás, que Jackie S. tinha os olhos menos cinzentos e um pouco mais verdes com pitadas de cor-de-rosa. E, nesse meio-inteiro tempo, Jackie S. sabia que pensava saber que todo vôo é bom, aterrisagens é que machucam os tornozelos. E Jackie S. voava, levando no rosto a brisa da noite e carregando nas pequenas asas que cresciam em suas costas gotas de orvalho com cheiro de alfazema, e assistindo às dores do mundo com a alma translúcida e deixando, no céu, um breve rastro, esverdeado como um adeus dado ao meio-dia numa esquina qualquer. Jackie S. resolve ser adulta como tanto pedia o pai que nunca teve. E prova seu próprio sangue para saber se ele tem gosto de coca-cola, como num livro lido antes das chuvas. Mas descobre que seu sangue tem apenas gosto de dor (que, pelo menos e graças a Santa Madalena de Tegucigalpa, não é de amor). E Jackie S. observa os entulhos daquele muro que um dia foi seu lar, e percebe: apesar da aparente montanha de lixo a ser removida pelos seus glóbulos de todas as cores, tudo vai dar certo. Basta escolher o caminho que, bem à sua frente, se abre em doze. Jackie S., só pra relaxar, canta enquanto rodopia (como sempre faz quando não tem certeza de ter alguma certeza): "perhaps, perhaps, perhaps".

10/09/2007

Depois de longo e tenebroso inverno, Jason Bourne está no Cine Pathé.
Não "perdam".

03/09/2007

Naquele estranho dia em que desapareci

Bato em minha própria porta e não há quem surja por detrás.
Não há convite para entrar, não há abraço de boas-vindas, não há sorriso de espanto nem lágrimas de contentamento.
Bato. Não há ruído de cadeiras, nem som de panelas disputando espaço no fogão, nem voz feminina cantarolando desafinadamente o que quer que seja, nem música de fundo, nem arrastar de chinelos.
Penso se devo insistir. Na dúvida, bato mais uma vez.
E tudo que recebo é um inteiro nada como resposta.
E dou meia-volta sobre mim e estico o olhar para a janela. Estão fechadas.
Fechadas como se eu viajasse há muito tempo e tivesse rasgado o bilhete de volta e deixado os pedacinhos caírem, um a um, por trinta ou quarenta ou cinqüenta e dois lugares diferentes.
Esfrego o vidro, e tudo que consigo perceber é que não há nada que revele, a mim, que estive dentro de mim um dia.
Dois passos para trás, e o azul cobre meus olhos.
E dois pássaros dançam sob esse azul, e uma mínima e magra nuvem em movimento sugere que venta, e o vento vai do leste para o oeste.
Dou as costas a mim. E me procuro em toda parte.
Não estou sentado no banco, não estou com as mãos ao volante, não piso em nenhum nome rabiscado no cimento, não espero na calçada o sinal verde para os pedestres, não peço ajuda ao policial, não carrego a lancheira rosa no pescoço, não passo a mão nas costas da amada, não cochilo na cadeira verde em frente à funerária, não balanço os pés sentado no muro, não assisto na tv os gols do domingo, não guardo os cigarros no bolso esquerdo, não estou em pé dentro do ônibus.
Não me vejo em nenhum lugar.
E olho minhas mãos, e estão vazias, e a velha cigana tinha razão: minha linha da vida é muito curta.
Passo os dedos em meu rosto, e sinto que ele se desmancha.
Pele, pêlos, sangue, escorrem pelo pescoço e mancham minha camisa.
Escorrem pelo meu peito e mancham minhas pernas. Escorrem pelas minhas pernas e evaporam sem tocar o chão.
E assim vou desaparecendo, pouco a pouco.
E nem lembro mais se sou um sonho ou se vivi.
Mas não há porque ter medo.
Não há.