12/07/2010


Pelo bem do futebol
A vitória da Espanha na Copa do Mundo é um alento. Em tempos onde praticamente todos os países abrem mão de suas características em nome de um pragmatismo que vinha dominando o cenário do futebol, é muito bom que o titulo de 2010 fique nas mãos de um time que joga não apenas um jogo dentro de seu estilo, mas vistoso, com toque de bola, com dribles, com um tipo de emoção que vai além da ?garra? e da força: vem com isso, também, a tal da força. Mas com habilidade e uma certa sensibilidade.
A Holanda da África do Sul foi uma espécie de seleção do Dunga que deu certo. Ou quase deu certo. Talvez a melhor definição tenha vindo de Paulo Vinícius Coelho, o PVC: a antiga seleção do futebol total veio disputar o título jogando o anti-futebol total. Um jogo duro, jogado com aquela palavrinha que assusta qualquer um que tenha ainda alguma crença no humanismo: foco. O jogo da Holanda era focado na força, na destruição das jogadas, e cuja maior diferença da seleção dunguista era a presença de dois bons jogadores, em forma e relativamente habilidosos: Sneijder e Robben. E ainda tem um certo Van Bommel, uma espécie de Felipe Melo loiro. Muito pouco para quem já teve Cruyjff, Resembrink e tantos outros.> Para os que dizem que a Espanha é um time de poucos gols, há que se lembrar que em praticamente todos os jogos o time espanhol jogou com um esquema que tinha prioridade na posse de bola, no toque elegante, na troca de passes, e na habilidade de jogadores como Iniesta, Xavi, Villa. Sem deixar de lado a tal da raça, sim, porque quando a habilidade não basta é preciso mesmo um pouco de força. Mas uma força que não é a força bruta e, sim, a força da determinação. Puyol, é o símbolo desse jogador que se não prima pela técnica apurada tem a tal raça, mas jogando limpo, bonito, dando gosto de se ver. Os poucos gols não retrataram a beleza de seu jogo. Mas mostrou que havia equilibrio no time. Fez poucos gols, levou menos ainda. Mas, nunca, abriu mão de jogar para a frente.
Há muito tempo uma seleção com essas características não era campeã. O Brasil em 94 foi campeão na base da força, com a diferença que tinha um gênio em campo, o baixinho Romário. Em 98, a França também não jogava com tanta habilidade, mas tinha outro gênio: Zinedine Zidane. Em 2002, de novo a Seleção Brasileira dura, mas com dois craques: Ronaldo e Rivaldo. Em 2006 a feia Itália, marcada pela brutalidade de Matterazzi. Ou seja: há tempos, bastante tempo, criou-se a impressão de que o futebol bonito não ganha mais nada. Idiotas da objetividade, morram com essa.
Para o futebol brasileiro, fica a lição espanhola. Um país que cuida de suas categorias de base, que organiza seu campeonato e sua seleção com cuidado, com critério. Um futebol que é rico, mas não é rico por acaso. É rico pela competência de seus dirigentes, e que sabe explorar, no melhor sentido da palavra, o talento de seus jogadores, mesclados com talentos que são adquiridos em outros países e que elevam a qualidade de seus jogadores, coisa que não acontece, por exemplo, na Itália. Para o futebol brasileiro, a lição de que não é preciso abrir mão de suas características, que não é preciso enclausurar seus jogadores em monastérios ou quartéis fechados. Não é preciso ser mal-educado, grosseiro, nem é preciso ter guerreiros em campo. É preciso ter craques. Para vencer no futebol, é preciso ter jogadores, esquemas táticos, técnica, habilidade.
Acabou a Copa do Mundo, e o privilégio da África do Sul é grande. Por ter possibilitado ao futebol bonito, bem jogado, renascer. A Copa de 2010, espero, será marcada pelo renascimento da arte no futebol.
O futebol do Brasil, agora, tem quatro anos para balançar sua estrutura mofada, suas convicções mesquinhas e reconstruir, no imaginário, aquilo que se perdeu. Com a consciência de que já faz tempo que não somos os melhores do mundo, mesmo tendo sido cinco vezes campeões. Que a CBF se espelhe no futebol espanhol, e deixe de tentar reinventar quem somos. Basta que se resgate o que parecia perdido, e que a Espanha acaba de mostrar que não morreu: o brilho do futebol que merece ser considerado arte, que merece ser considerado mais que uma guerra em campos de batalha.
Vem aí 2014. Dá tempo. Parabéns à Espanha, e parabéns ao futebol. Seu campeão do mundo, hoje, é digno de sê-lo. Como há muito tempo não era.
(foto do Big Picture)

08/07/2010

A banalidade do mal é uma expressão de Hannah Arendt, usada em seu livro “Eichmann em Jerusalém”. Arendt faz uma análise de Adolf Eichmann, braço direito de Hitler. Ela mostra que Eichmann não apresentava características que o enquadrassem como doentio, perverso, monstruoso. Ao contrário. Um dos grandes assassinos da história se mostrava funcionário cioso, eficiente, que obedecia, sem questionar, às ordens superiores. O que movia Eichmann era um sentimento de hierarquia burocrática, e o pronto atendimento às ordens era a forma de possibilitar sua ascenção dentro dessa hierarquia. Não havia para ele bem e mal. Considerado um monstro, ele não tinha histórico significativo de traumas ou desvios emocionais. Eichmann era, em tudo, dentro dos padrões.
E então Hannah Arendt mostra que alguns indivíduos agem dentro do sistema em que vivem movidos pelas regras consolidadas dentro desse sistema. O código interno do sistema reduz a percepção individual de bem ou mal, de certo ou errado, de moral ou imoral. Então chegamos ao caso de Eliza Samudio. E então chegamos a algumas questões. Será que o crime aparentemente cometido por um grupo de pessoas, entre eles um atleta famoso, foi cometido por monstros desprovidos de sanidade? Dentro de que sistema de valores eles agem? Porque eles julgam legítimo matar uma pessoa e, com tanta frieza, “resolver o caso” com algo tão horroroso?
Vale a pena pensar um pouco mais sobre isso. Vale a pena pensar se não estamos, todos, construindo um sistema que de alguma maneira legitima comportamentos como o dos assassinos de Eliza, os assassinos de Isabella, os assassinos de João Hélio. É fácil cair na tentação de explicações que, no fim das contas, servem mais de escapismo que de compromisso. Nem todo criminoso é monstro. Nem todo criminoso é doentio. Não é verdade que a pobreza ou a infância sofrida sejam determinantes exclusivas de padrões de comportamento criminosos. A coisa pode ir muito além disso. Mas estamos sempre acreditando que o mal é praticado por bandidos desprovidos de alma, por gente doentia. É mais fácil acreditar que alguém que comete um crime pavoroso seja alguém fora das convenções sociais do que perceber que esse monstro foi concebido dentro das normas estabelecidas por nós mesmos, ou por nossos pares, ou por nossos líderes, ou por nossos ídolos. É mais prático, mais cômodo. Mais simples. Gera menos esforço.
Outra coisa. Atitudes pequenas podem ajudar. Não custa nada pensar, por exemplo, se postar no twitter piadinhas a respeito do caso não nos torna cúmplices deste e dos próximos crimes. Porque a piadinha banaliza a crueldade do ato. A piadinha é quase um álibi que nos coloca em outro lugar no aspecto psicológico, distante do ato em si. Quanto mais distante, mais próximos de nós. Pule a piadinha. Ela é inútil. Ela é tola.
E Hannah Arendt foi tão clara. É tão necessário estarmos atentos à banalidade de atos do mal e evitar sua ocorrência. Tão necessário.