23/06/2005

O Fim da Utopia

Thomas More apresenta Utopia como uma ilha, um lugar, um país onde a sabedoria e a felicidade do povo existem, pois nesse país há um sistema legal, social e político perfeito, dirigido pela razão. A Utopia é um lugar que fica na linha exata onde o céu se encontra com a terra: no horizonte. Porém, se damos um passo em direção a Utopia, ela se afasta um passo de nós. Se damos cinco passos, ela se afasta cinco passos. Se corremos, ela parece se distanciar na mesma velocidade e em direção contrária. Então, para que serve a Utopia se, por mais que se caminhe, nunca se chega a ela? Simples, diz Fernando Birri: serve para nos fazer caminhar até ela.
O Brasil Perfeito é uma espécie de Ilha da Utopia. Quanto mais caminhamos e tentamos chegar a ele, mais ele se afasta. O Brasil Perfeito não existe. E nunca vai existir. O Brasil Perfeito se encontra no sentido original da palavra utopia: "em lugar nenhum". O Brasil Perfeito é uma utopia na concepção moderna da palavra: uma quimera, uma fantasia, uma coisa irrealizável. Essa confusão toda de Brasília serve, mesmo que nem tudo seja verdade, para nos mostrar que o Brasil Perfeito nunca vai chegar. Para nos mostrar que não adianta esperar um partido perfeito, nem um presidente perfeito, nem uma oposição perfeita. Não existe um sistema perfeito, nem um salário-mínimo perfeito. Não podemos esperar uma escola perfeita, nem uma saúde perfeita. Não há como ficar esperando e caminhando com os olhos no amanhã perfeito, na justiça perfeita, na polícia perfeita, na seleção de futebol perfeita. Não podemos esperar nem mesmo mocinhos perfeitos, já que o mocinho da vez, como quase todos os que já surgiram, tem o pé na lama e dorme no covil do bandido, agarrado ao produto do roubo e, portanto, não é confiável. E o que fazer? Desistir?Às vezes é essa a sensação que nos dá esse país. A de que talvez seja melhor desistir e irmos cuidar dos filhos, de casa, de nossos cachorros e papagaios. E esquecer aonde vivemos e quem somos. Mas, se não vai existir nunca o Brasil Perfeito, será que não podemos, pelo caminho sem fim que leva a esse impossível Brasil Perfeito, deixar para os nossos, pelo menos, um Brasil Melhor?
Sartre, o aniversariante ausente da semana, afirmava entre tantas coisas, com o existencialismo, que não interessa as causas que nos levam a ser o que somos: nós mesmos somos os principais responsáveis por sê-lo. O Brasil precisa descobrir quem é, e deixar de querer ser, ou de dizer que é assim porque foi assim sempre. É preciso fazer, dos limões que temos, tão azedos, uma boa e refrescante limonada. Este é um país perfeitamente imperfeito. Assim como todos os outros. Não adianta esperar que uma ou muitas CPIs mudem o Brasil. O Brasil, que somos nós, é que deve mudar o Brasil. Chega de esperar salvadores ou de ficarmos, em frente à TV, nos deliciando com espetáculos onde, no final, a nossa é de mussarela. É melhor a gente mesmo construir o Brasil que é possível. Esse que está aí não é o nosso. Nós também não somos um povo perfeito, mas podemos fazer melhor. E bem depressa. Porque o trem que leva para Utopia não vai passar. Pode ter certeza.

16/06/2005

O País da Cara de Pau

Para Raimundo Uchoa

O que mais assusta nessa confusão em que o Brasil se vê envolvido, alimentada pelo Deputado Roberto Jefferson e suas declarações, não é a existência do "mensalão", nem o vídeo do pagamento de propina, nem mesmo que seja muito remota a possibilidade de que essa CPI chegue a algum termo minimamente condizente com os anseios de justiça do povo brasileiro. O que assusta, mesmo, é a cara-de-pau de quem está sentado em frente a outro cara-de-pau, fingindo que não sabe, que nunca viu, que não teve notícia ou como se a corrupção fosse algo estranho, inesperado ou assustadoramente inédito no país. Não é possível qualquer brasileiro minimamente inteligente acreditar que as denúncias do deputado cantor, ex-primeiro escalão da tropa de choque de presidente afastado por ter institucionalizado "oficialmente" a corrupção no país, sejam fruto apenas e tão somente de uma mente privilegiada e criativa, que inventou tudo e resolveu "derrubar a casa" do governo Lula. Se não é politicamente correto nem historicamente prudente afirmar que os nativos brasileiros eram corruptos antes da chegada de Cabral, não é arriscado dizer que a corrupção no Brasil pode ser documentalmente colocada como irmã gêmea do Descobrimento já que, na carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, há um explícito pedido de favorecimento, amarrado ao teor emocional de uma correspondência que, certamente, deixou feliz o monarca: Caminha pede que seu genro, condenado por roubo e cumprindo pena de degredo em São Tomé, seja beneficiado com um "afrouxamento" da pena e mandado para o recém-descoberto novo território português. Ou seja: o tráfico de influência, forma de corrupção tão antiga quanto a "vida fácil", estava registrado, para sempre, no último parágrafo da primeira correspondência oficial redigida em nossas terras. Ou, no caso, em nossas águas. Daí, o susto: ou a classe política brasileira está vivendo na Ilha da Fantasia ou serra, todos os dias, seus longos narizes de madeira em frente ao espelho. Provavelmente, com serrotes fornecidos por nós mesmos, já que somos nós, com esse eterno desprezo que temos para com a reflexão antes de dar um voto, que os colocamos lá, no centro desse picadeiro chamado Brasília. Que, estranhamente, está mais para uma estranha polvorosa em torno do assunto do que mostrando alguém com sinais mínimos de verdadeira indignação. E isso, essa aparente falta de revolta, transmitida pela tv nos longos depoimentos ou nas entrevistas cheias de entrelinhas, nos deixa com uma dúvida: estariam nossos nobilíssimos representantes entorpecidos por uma longa exposição ao vírus da corrupção e, portanto, sem capacidade de indignação, ou estão mais assustados do que, verdadeiramente, preocupados? E, fazendo eco à pergunta do jornalista Ricardo Setti, do site No Mínimo: onde está a indignação do Presidente, tantas vezes demonstrada quando candidato, quando sindicalista e quando "lado de fora" do Palácio do Planalto? A conclusão pode ser: todos mentimos, todos nos enganamos, todos colaboramos ao ver, todos os dias, debaixo de nossos longos narizes encerados, deputados, senadores, prefeitos, vereadores, policiais, amigos, aderentes e parentes pagando propina, ganhando licitações fraudulentas, comprando voto, liberando em blitz, arranjando emprego público, furando fila no banco ou dando troco errado em padaria. Não, não somos um país de corruptos. Mas, pelo visto, estamos aos 40 minutos do segundo tempo, perdendo por dois a zero.
A essa altura, um empate já estaria de bom tamanho.

02/06/2005

Serra Leoa também é aqui

Não é preciso que ninguém nos diga que o Brasil é um país cheio de desigualdades, onde ricos e pobres estão separados pelo abismo da falta de educação, de saúde pública e de tantas outras faltas. Basta qualquer saída por qualquer cidade brasileira para ver o que os filmes de ficção científica mostram há tempos: a existência de mundos paralelos que se comunicam, eventualmente, através de portais que se abrem aleatoriamente. A diferença do Brasil para o mundo da ficção é que, no Brasil, para se mudar de uma dimensão para outra basta abrir a porta do carro.
Os números divulgados semana passada dando conta de que o Brasil só perde, quando o assunto é desigualdade na distribuição de renda, para Serra Leoa, apenas nos fazem constatar numericamente o que todo mundo vê: a cada dia mais gente tem menos, e menos gente tem mais. Segundo os dados, quase 22 milhões de brasileiros vivem, ou acham que vivem, com menos de 25% de um salário mínimo por mês, aproximadamente 75 reais. Mais: cerca de 54% dos brasileiros vivem, ou pensam que aquilo que eles fazem é viver, com meio salário mínimo por mês, aproximadamente 150 reais. A solução? Investimentos em educação, em saúde pública e no crescimento econômico. Então diga lá: se todo mundo sabe, se os economistas sabem, os políticos sabem, os publicitários sabem como resolver isso, porque essa mesma lenga-lenga há anos? Descaso? Corrupção? Canalhice? Incompetência? Ou vontade de ser o primeiro em tudo, inclusive nisso? Bem, se esse for o motivo, vou dar minha contribuição. Afinal, para derrotar um inimigo o primeiro passo é conhecê-lo.
A República da Serra Leoa é um país situado na região oeste da África, ao sul de Guiné e a nordeste da Libéria, com aproximadamente 5 milhões de habitantes, mais ou menos um terço da população da cidade de São Paulo. Cerca de 65% de sua população vive no campo, e sua taxa de analfabetismo é de 63,7%. Sua moeda é o leone, que eu não faço a menor idéia de quanto está valendo frente ao dólar. Cada mulher de Serra Leoa tem, em média, 6 filhos, e expectativa de vida de 39 anos, sendo a expectativa de vida dos homens de 39 anos. A taxa de mortalidade infantil de Serra Leoa é de 170 por mil. Sua renda per capta é de 140 dólares, o que significa pouco mais de 10 dólares, ou 25 reais por mês. Sua capital é Freetown, e o inglês é sua língua oficial. Além de ser o campeão mundial na desigualdade social, Serra Leoa é o país com o mais baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) no mundo, e é presidido pelo ditador Alhaji Doctor Ahman Tejan Kabbah. Sei que não é muito, ainda, e prometo pesquisar um pouco mais. Mas creio que seja o suficiente para que nossos governantes prestem atenção nos números e percebam que, apesar de tantas diferenças ente os dois países, curiosamente há muitas semelhanças. E que para ultrapassar Serra Leoa não é preciso muito. Estamos cada vez mais perto. A gente chega lá. Só mais um pouco de descaso e incompetência e a gente consegue.