09/03/2006

Metendo o pé na lama

Pense num homem feio. Enfeie mais. Pense que ele tem vitiligo. Corte uns 15 centímetros das pernas dele. Coloque nele os dentes do Ronaldinho Gaúcho, o cabelo do Ronnie Von e o jeito de andar de um pingüim manco. Pronto. Esse era o Rossi.
Rossi era o técnico da gloriosa Portuguesa, time de várzea de Belo Horizonte onde, como já contei aqui, comecei e encerrei minha espetacular carreira de jogador de futebol, na adolescência. Outro dia, comecei a lembrar do Rossi e das aventuras que todo domingo ele nos fazia enfrentar para bater uma bolinha.
Rossi era detetive aposentado, se não me falha a memória. Não sei bem porque, mas se aposentou cedo. E, depois de perder um filho, morto por um traficante, resolveu fazer, no bairro dele, um time de futebol, para ajudar a meninada a ficar longe das drogas e sonhar com um futuro melhor. Cheguei à Portuguesa através de um amigo, um pouco mais velho do que eu, e que jogava no time adulto, mesmo tendo 17 anos. Eu tinha uns 15. Era um mundo completamente diferente do meu. Cheguei lá com minhas chuteiras novinhas, short importado e meiões branco-Omo, um dos mais de 10 que eu tinha. Rossi olhou pra mim de cima a baixo, balançou a cabeça e disse: "já jogou bola descalço, branquelinho?". Respondi que não, e ele disparou: "pois tire aí as meinhas que mamãe lavou e o sapatinho de princesa, e mete o pé na lama, pra criar uns calos". Esse era o Rossi. Em trinta segundos me situou naquele espaço novo, e me deu várias lições. Em duas frases. Passei mais de um ano jogando na Portuguesa, antes de me mudar para o Rio. E descobri que Rossi era um amigo, acima de tudo. Quase um pai. E meio herói. Ele mesmo lavava os uniformes da Portuguesa, camisas verdes que, de tão velhas, eram quase brancas. Depois de um tempo, me colocou pra jogar também no time adulto, mesmo sendo eu um menino. Me entregou a camisa 7, com um rasgo quilométrico debaixo do braço esquerdo, e deu a ordem: "entra sem medo. Se alguém machucar você, a gente cobre de porrada". Entrei, fiz um gol, e, como não podia deixar de ser, perdemos. Mas Rossi me abraçou no final e deu um sorriso enorme, sem uns três dentes da frente, repetindo "é isso aí, branco-azedo, é isso aí".
E, nesse clima de família, com as piadas sem graça do Rossi e a sensação de que éramos o maior time de futebol de todos os tempos, rodávamos a periferia de Belo Horizonte. Uma turma de meninos e rapazes, uns vinte, subindo e descendo morros, em campinhos no meio da favela, onde fosse. Rossi pagava as passagens de todos. E, depois de cada jogo, aparecia com um saco de laranjas, que a gente era obrigado a chupar. Dizia ele que laranja era melhor que água, para reidratar e repor os sais minerais. O resultado dos jogos não importava. O que valia era a confusão e a aventura. Mas, vendo a gente meio chateado por nunca ganhar de ninguém, ele dizia: "esquenta não, moçada. Semana que vem tem mais. O jogo que vocês têm que vencer de verdade fica fora do campo".
Rossi perdeu o jogo contra um câncer, e eu só soube disso muito, muito tempo depois. Mas deixou gravada em mim aquela primeira frase.
E, hoje, todos os dias, eu tento fazer o mesmo que fiz naquele primeiro dia: meter o pé na lama e criar mais calos. O Rossi era gênio, e eu nem sabia.

2 comentários:

Mariana Arraes disse...

Percebi uma coisa... o Rossi era sábio e na verdade, mesmo com um placar quase nunca favorável, ele fez desse time aí, de alguns poucos rapazes e um "branquelo azedo", um time de campeões. Porque quando se aprende com os sábios, a vitória é pra vida inteira. Beijos, meu querido amigo!!

Maya disse...

|Genios tem essa mania doida de esconder-se dentro de gente que a gente nem imagina...|