25/05/2005

O Pianista de Kent

Vamos descartar a hipótese de que o pianista misterioso de Kent seja um alienígena, programado ou desprogramado para passar um tempo por aqui e ser abduzido, lá na frente, com todos os nossos segredos guardados em uma pasta rosa. Hipótese por demais fantástica, considerando que uma civilização capaz de uma proeza dessas seja bem mais inteligente que a nossa e não ia deixar seu enviado logo na Inglaterra, tão perto do Príncipe Charles.
Vamos descartar, também, a possibilidade, bem mais real, de que o pianista loiro e mudo de Kent seja uma grande jogada de marketing, para se promover um filme, um livro, uma rede de lojas de roupas masculinas, um alguém ou um produto qualquer, que só vai ser revelado lá na frente. Capitalista demais pro meu gosto.
Vamos descartar, ainda, a teoria levantada por Tutty Vasques de que o pianista desmemoriado de Kent foi jogado de um transatlântico enquanto tocava uma música de Ivan Lins: hipótese por demais fantasiosa já que, se isso fosse verdade, ele teria sido enforcado antes.
Não consideremos que o pianista molhado de Kent seja um paulistano carregado pela enxurrada nas ruas de São Paulo e levado pela correnteza até a região. Hipótese pouco convincente, já que ele deveria ter se engasgado com algum coliforme gigante antes de chegar ao mar.
E, para acabar com essas especulações, vamos deixar pra lá a possibilidade de que o pianista que toca Beatles seja, apenas, alguém sem memória, porque essa seria uma versão muito simples e incondizente com um mistério tão bom de se tentar desvendar.
Particularmente, entre tantas hipóteses levantadas, prefiro ficar com uma que, aparentemente, ainda não foi colocada por ninguém: o pianista estranho de Kent, encontrado em uma praia da Inglaterra vestindo roupas finas mas com as etiquetas arrancadas, sem falar nada, mas tocando música erudita e Beatles, é, apenas, uma ilusão, uma alucinação coletiva. Ele não existe. O pianista esquisitão de Kent nada mais é que um pouco de cada um de nós, idealizado simultaneamente e projetado de forma holográfica em um lugar qualquer da Terra. Ele representa nossa vontade, em alguns ainda nem manifesta, de deixar de ser um outdoor ambulante. Daí as roupas sem griffe. Ele representa nossa vontade de sermos outros, de esquecermos quem somos nem que seja por alguns dias, e nos calarmos, e nos permitirmos ter medo, e mostrar nosso lado sensível e talentoso que ninguém nunca quis prestar atenção. O pianista meio amalucado de Kent, para mim, é um espectro, um modo que inventamos, sem saber, para nos rebelarmos contra as chatices dessa vida. E sermos quem temos vontade de ser. E vivermos em algum lugar que a gente goste, sem ninguém saber quem somos ou o nome dos nossos pais ou a rua em que a gente morava quando era criança. O pianista doidão de Kent é o que nós, pelo menos um dia em nossas vidas, desejamos ser: um mistério a ser desvendado, sim, mas que só vai ser revelado no dia em que a gente quiser, como a gente quiser, para quem a gente achar que deve.
Qualquer outra hipótese, para mim, está descartada. Até prova em contrário, o pianista esquecidinho de Kent é cada um de nós.

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