03/09/2007

Naquele estranho dia em que desapareci

Bato em minha própria porta e não há quem surja por detrás.
Não há convite para entrar, não há abraço de boas-vindas, não há sorriso de espanto nem lágrimas de contentamento.
Bato. Não há ruído de cadeiras, nem som de panelas disputando espaço no fogão, nem voz feminina cantarolando desafinadamente o que quer que seja, nem música de fundo, nem arrastar de chinelos.
Penso se devo insistir. Na dúvida, bato mais uma vez.
E tudo que recebo é um inteiro nada como resposta.
E dou meia-volta sobre mim e estico o olhar para a janela. Estão fechadas.
Fechadas como se eu viajasse há muito tempo e tivesse rasgado o bilhete de volta e deixado os pedacinhos caírem, um a um, por trinta ou quarenta ou cinqüenta e dois lugares diferentes.
Esfrego o vidro, e tudo que consigo perceber é que não há nada que revele, a mim, que estive dentro de mim um dia.
Dois passos para trás, e o azul cobre meus olhos.
E dois pássaros dançam sob esse azul, e uma mínima e magra nuvem em movimento sugere que venta, e o vento vai do leste para o oeste.
Dou as costas a mim. E me procuro em toda parte.
Não estou sentado no banco, não estou com as mãos ao volante, não piso em nenhum nome rabiscado no cimento, não espero na calçada o sinal verde para os pedestres, não peço ajuda ao policial, não carrego a lancheira rosa no pescoço, não passo a mão nas costas da amada, não cochilo na cadeira verde em frente à funerária, não balanço os pés sentado no muro, não assisto na tv os gols do domingo, não guardo os cigarros no bolso esquerdo, não estou em pé dentro do ônibus.
Não me vejo em nenhum lugar.
E olho minhas mãos, e estão vazias, e a velha cigana tinha razão: minha linha da vida é muito curta.
Passo os dedos em meu rosto, e sinto que ele se desmancha.
Pele, pêlos, sangue, escorrem pelo pescoço e mancham minha camisa.
Escorrem pelo meu peito e mancham minhas pernas. Escorrem pelas minhas pernas e evaporam sem tocar o chão.
E assim vou desaparecendo, pouco a pouco.
E nem lembro mais se sou um sonho ou se vivi.
Mas não há porque ter medo.
Não há.

2 comentários:

Raimundo Neto disse...

Quando for possível, quando for preciso, quando eu quiser inspiração (e não querer mais essa labuta construtiva que faço todos os dias na minha cabeça), passarei por aqui.
Quando for provável o meu desaparecimento... é aqui que guardarei um dos meus olhos. O esquerdo, que tem bom gosto!

J. disse...

porrrra!!! \o/