20/07/2011
Enfim, embora com atraso, o tão bem guardado segredo
Antes que me ponha, finalmente, a revelar o tão bem guardado segredo que é a receita obtida por meu tataravô a duras penas nas ilhas geladas na Rondívia em fins do século 18, deixo aqui registrado para toda a não-eternidade que o universo não é composto por terra, água, ar e fogo, como vem da filosofia grega clássica e posteriores.
A Rondívia, este país situado em algum ponto a leste da rua Humboldt, cujo único cidadão caucasiano branco bípede com polegares opositores, barba, bigode e cabelo quase nenhum e que algum dia tenha escutado a quinta sinfonia a visitá-lo foi meu tataravô, é pródiga (a Rondívia, caso já tenha se esquecido tão longa foi a frase anterior) na produção de duas coisas: vento e filósofos. Tanto que os filósofos da Rondívia são absolutamente desconhecidos em qualquer parte do mundo mas, caso se desse o contrário e o mundo inteiro tivesse se dobrado à sapiência filosófica desses gênios desconhecidos, diria-se desses serem os filósofos cabeças-de-vento.
Os filósofos da Rondívia há muito, desde que o mundo era simplesmente um sonho insano na cabeça desocupada de seu criador, sabem que tudo o que existe, existiu ou haverá um dia de existir é composto por cinco elementos essenciais: sal, peixe, vinho, música e amor. Desses cinco elementos deriva-se todo o universo. O corpo, a pedra, a folha, o mar, o sol, as pilastras dos palácios, os livros, os macacos, as bactérias, e até mesmo os políticos e os árbitros de futebol, acredite, tudo que há, houve e haverá parte desses elementos, o que foi muito tempo depois interpretado um tanto erroneamente por Aristóteles e pelos alquimistas e por Jorge Ben Jor e que gerou os quatro elementos e a quintessência e outros enganos, coisa que deixaremos para comentar em outra oportunidade caso ela ainda nos surja em vida, assim como os motivos e circunstâncias que levaram meu avô a aportar na Rondívia e tudo que sucedeu após esse fenomenal evento.
O fato é que o universo é composto por sal, peixe, vinho, música e amor. E é daí que vem a receita mais famosa da Rondívia: dos cinco elementos, mais a sextessência rondiviana, que é o macarrão. Hoje através da ciência pós-moderna sabe-se que o macarrão é fonte de carboidratos que são fundamentais para nossa sobrevivência, e daí se percebe a sabedoria do povo rondiviano transformada em culinária: os cinco elementos essenciais, mais a sextessência, fazem a Bacalhonada, o prato fundamental em torno do qual se reúne todo o conhecimento dos filósofos da Rondívia e, portanto, o conhecimento humano.
Tudo isso foi dito para que você perceba a necessidade de reverenciar a receita que se segue, e transformar o ato de prepará-la em evento ritualístico e sua deglutição em uma festa que deve ser anunciada aos quatro ventos antes, durante e após todo o ritual, até mesmo pelo rádio ou, quem sabe, por pombos-correio, muito mais modernos.
Uma última observação antes da receita propriamente dita: siga rigorosamente as quantidades determinadas, para não se ter o risco de um resultado absolutamente cartesiano. Assim como na vida, quanto mais se seguem as regras menos se controlam os resultados, e é isso que faz, desse prato, um símbolo indelével da sabedoria dos mais sábios de todos os sábios de toda a história humana.
Bacalhonada
Ingredientes:
* 500g de bacalhau em lascas
* 1kg de macarrão (qualquer formato, mas preferencialmente talharim para que possam todos se divertir e passar alguma vergonha ao enrolar o macarrão no garfo)
* 12 garrafas de vinho (algumas de vinho branco, outras de vinho tinto)
* um tantinho de Azeite
* algumas cebolas
* alho em pasta
* uns poucos tomates
* um pouquinho de sal
* azeitonas sem caroço, pretas e verdes
* música a gosto
* uma ou mais pessoas as quais se ama
Modo de preparo:
Mergulhe o bacalhau em lascas (previamente dessalgado mas não muito) em meio litro de vinho branco. Deixe que o bacalhau fique um tanto bêbado, o que deve levar cerca de 45 minutos. Beba o meio litro restante.
Coloque música a gosto no ar, e convide a pessoa que você ama para dançar. Abra outra garrafa de vinho. Distribua vinho para todos a cada 5 minutos.
Faça o macarrão à parte (fazer o macarrão é tão óbvio que não merece instruções).
Em uma panela média coloque o azeite, deixe esquentar; coloque o alho em pasta, doure as cebolas cortadas em rodelas; quando douradas, beba um copo inteiro de vinho, dê dois rodopios com cuidado para não se queimar e beije o(s) ser(es) amados.
Ponha na panela o bacalhau e mexa bastante, com cuidado para que não frite o bacalhau ou você também estará frito; coloque os tomates picados; mexa mais lentamente; experimente e vá colocando sal a gosto.
Coloque algo como dois copos de vinho branco na panela para fazer um caldo leve; deixe esquentar até quase ferver, mas não ferva; beba mais vinho.
Quando perceber que o bacalhau está suficientemente cozido, o que vai depender mais de quanto vinho tomou do que qualquer outra coisa, desligue.
Em uma travessa coloque o macarrão, jogue o molho de bacalhau por cima, decore com as azeitonas pretas e verdes e mais rodelas de cebola, que foram fritas no que restou na panela.
Beba mais vinho, cante alguma coisa como “Corrientes, Tres Cuatro Ocho” ou algo que o valha, bem alto, e sirva.
Todos devem estar embriagados do vinho.
A música deve estar no volume suficiente para que todos cantem, mas que todos possam conversar sobre futebol, amores, Paris, Oeiras ou qualquer coisa que encante a alma.
Essa receita serve entre duas e 6 pessoas. Ou mais, quem há de saber?
Antes que me ponha, finalmente, a revelar o tão bem guardado segredo que é a receita obtida por meu tataravô a duras penas nas ilhas geladas na Rondívia em fins do século 18, deixo aqui registrado para toda a não-eternidade que o universo não é composto por terra, água, ar e fogo, como vem da filosofia grega clássica e posteriores.
A Rondívia, este país situado em algum ponto a leste da rua Humboldt, cujo único cidadão caucasiano branco bípede com polegares opositores, barba, bigode e cabelo quase nenhum e que algum dia tenha escutado a quinta sinfonia a visitá-lo foi meu tataravô, é pródiga (a Rondívia, caso já tenha se esquecido tão longa foi a frase anterior) na produção de duas coisas: vento e filósofos. Tanto que os filósofos da Rondívia são absolutamente desconhecidos em qualquer parte do mundo mas, caso se desse o contrário e o mundo inteiro tivesse se dobrado à sapiência filosófica desses gênios desconhecidos, diria-se desses serem os filósofos cabeças-de-vento.
Os filósofos da Rondívia há muito, desde que o mundo era simplesmente um sonho insano na cabeça desocupada de seu criador, sabem que tudo o que existe, existiu ou haverá um dia de existir é composto por cinco elementos essenciais: sal, peixe, vinho, música e amor. Desses cinco elementos deriva-se todo o universo. O corpo, a pedra, a folha, o mar, o sol, as pilastras dos palácios, os livros, os macacos, as bactérias, e até mesmo os políticos e os árbitros de futebol, acredite, tudo que há, houve e haverá parte desses elementos, o que foi muito tempo depois interpretado um tanto erroneamente por Aristóteles e pelos alquimistas e por Jorge Ben Jor e que gerou os quatro elementos e a quintessência e outros enganos, coisa que deixaremos para comentar em outra oportunidade caso ela ainda nos surja em vida, assim como os motivos e circunstâncias que levaram meu avô a aportar na Rondívia e tudo que sucedeu após esse fenomenal evento.
O fato é que o universo é composto por sal, peixe, vinho, música e amor. E é daí que vem a receita mais famosa da Rondívia: dos cinco elementos, mais a sextessência rondiviana, que é o macarrão. Hoje através da ciência pós-moderna sabe-se que o macarrão é fonte de carboidratos que são fundamentais para nossa sobrevivência, e daí se percebe a sabedoria do povo rondiviano transformada em culinária: os cinco elementos essenciais, mais a sextessência, fazem a Bacalhonada, o prato fundamental em torno do qual se reúne todo o conhecimento dos filósofos da Rondívia e, portanto, o conhecimento humano.
Tudo isso foi dito para que você perceba a necessidade de reverenciar a receita que se segue, e transformar o ato de prepará-la em evento ritualístico e sua deglutição em uma festa que deve ser anunciada aos quatro ventos antes, durante e após todo o ritual, até mesmo pelo rádio ou, quem sabe, por pombos-correio, muito mais modernos.
Uma última observação antes da receita propriamente dita: siga rigorosamente as quantidades determinadas, para não se ter o risco de um resultado absolutamente cartesiano. Assim como na vida, quanto mais se seguem as regras menos se controlam os resultados, e é isso que faz, desse prato, um símbolo indelével da sabedoria dos mais sábios de todos os sábios de toda a história humana.
Bacalhonada
Ingredientes:
* 500g de bacalhau em lascas
* 1kg de macarrão (qualquer formato, mas preferencialmente talharim para que possam todos se divertir e passar alguma vergonha ao enrolar o macarrão no garfo)
* 12 garrafas de vinho (algumas de vinho branco, outras de vinho tinto)
* um tantinho de Azeite
* algumas cebolas
* alho em pasta
* uns poucos tomates
* um pouquinho de sal
* azeitonas sem caroço, pretas e verdes
* música a gosto
* uma ou mais pessoas as quais se ama
Modo de preparo:
Mergulhe o bacalhau em lascas (previamente dessalgado mas não muito) em meio litro de vinho branco. Deixe que o bacalhau fique um tanto bêbado, o que deve levar cerca de 45 minutos. Beba o meio litro restante.
Coloque música a gosto no ar, e convide a pessoa que você ama para dançar. Abra outra garrafa de vinho. Distribua vinho para todos a cada 5 minutos.
Faça o macarrão à parte (fazer o macarrão é tão óbvio que não merece instruções).
Em uma panela média coloque o azeite, deixe esquentar; coloque o alho em pasta, doure as cebolas cortadas em rodelas; quando douradas, beba um copo inteiro de vinho, dê dois rodopios com cuidado para não se queimar e beije o(s) ser(es) amados.
Ponha na panela o bacalhau e mexa bastante, com cuidado para que não frite o bacalhau ou você também estará frito; coloque os tomates picados; mexa mais lentamente; experimente e vá colocando sal a gosto.
Coloque algo como dois copos de vinho branco na panela para fazer um caldo leve; deixe esquentar até quase ferver, mas não ferva; beba mais vinho.
Quando perceber que o bacalhau está suficientemente cozido, o que vai depender mais de quanto vinho tomou do que qualquer outra coisa, desligue.
Em uma travessa coloque o macarrão, jogue o molho de bacalhau por cima, decore com as azeitonas pretas e verdes e mais rodelas de cebola, que foram fritas no que restou na panela.
Beba mais vinho, cante alguma coisa como “Corrientes, Tres Cuatro Ocho” ou algo que o valha, bem alto, e sirva.
Todos devem estar embriagados do vinho.
A música deve estar no volume suficiente para que todos cantem, mas que todos possam conversar sobre futebol, amores, Paris, Oeiras ou qualquer coisa que encante a alma.
Essa receita serve entre duas e 6 pessoas. Ou mais, quem há de saber?
25/06/2011
18/06/2011
Macarronária
É tarefa masculina prover o alimento da fêmea, especialmente quando a fêmea faz morada no quarto principal do peito do macho. É tarefa do homem caçar o ex-vivo animalzinho ou tubérculo ou sorrateira raiz, ou usar o cartão de crédito ou a capacidade de realizar o escambo (ou, em último caso, a invasão armada de um depósito de um supermercado qualquer) para transformá-lo em fondues de peito de morango ao chocolate, bife de lontras a escarola, pato com laranjas da Albânia e molho de catupiry ou salada Scafollesi Tontti enfeitada com fios de ovos de crocodilos albinos da Malásia. Ou até mesmo num simples molho a bolonhesa. Mas os tempos modernos fazem crer aos menos ponderados que, pelo fato de todos terem os direitos iguais, homens, mulheres e suas variantes e adjacências, tal fato (o prover da fêmea pelo macho) esteja em desuso. Evidentemente, é de uma grande parvoíce tal assertiva, pois a confecção de pratos coloridos, saborosos e, evidentemente, nutritivos, do homem para a mulher é, no mínimo, sinônimo de boa educação, além, é claro, de servir a objetivos tão nobres quanto o de alimentar, que sejam o de enamorar, de seduzir, de encantar e o de evitar que seres tão encantadores tenham suas delicadas extremidades superiores, vulgarmente chamadas de dedos, cheirando a alho ou com bolhas liquosas causadas pelos inevitáveis acidentes com o calor das panelas. Enfim, está escrito nas Tábuas de Abdalel, no item 14, alínea c: “faz o alimento para o corpo de sua amada, que dela receberás o alimento de sua alma”.
Assim, procede que o homem deverá ter como conhecimento essencial ao menos uma receita que provoque, em seu objeto de adoração: aumento dos batimentos cardíacos, dilatação das pupilas, discreto inchaço ao sul do continente, elevação da temperatura corporal, aumento da salivação e vontade de rodopiar pelo ar ao som do Bolero de Ravel. Evidentemente, a dança varia conforme a música, mas tem-se como parâmetro de qualidade gustativa o NRPS, ou número de rodopios por solfejo. O índice ideal, segundo estudos apuradíssimos do Instituto de Ciências Gastronômicas de Valverdianne, Escolávia, é de 52,876 rodopios por solfejo. Mas houve um caso no ano de 1937, no sul da Lituânia, em que uma jovem donzela se encantou tanto por um singelo bife ao molho preparado pela sua metade da laranja que rodopiou à incrível marca de 682 rodopios por solfejo, marca considerada imbatível e que recebeu a impressionante média de 10,6 pontos no levantamento das placas de pontuação pelos jurados, ainda mais impressionante pelo fato da maior nota possível a cada um ser 10, o que, apesar de certo estranhamento inicial, não obteve maior repercussão diante do espetáculo dos rodopios da jovem em questão.
Dá-se, então, que é preciso ter nas mangas não apenas abotoaduras mas, principalmente, uma receita. Simples que seja, como a obtida a duras penas por meu tataravô durante expedição às ilhas geladas da Rondívia, no século 18, e guardada debaixo de sete chaves no baú da memória da família e que será posta, na próxima quarta-feira, à disposição do mundo em nome da liberdade, da igualdade, da fraternidade e do bom andamento das relações entre os sexos e entre todos os povos.
(publicado originalmente em março/2008)
Assim, procede que o homem deverá ter como conhecimento essencial ao menos uma receita que provoque, em seu objeto de adoração: aumento dos batimentos cardíacos, dilatação das pupilas, discreto inchaço ao sul do continente, elevação da temperatura corporal, aumento da salivação e vontade de rodopiar pelo ar ao som do Bolero de Ravel. Evidentemente, a dança varia conforme a música, mas tem-se como parâmetro de qualidade gustativa o NRPS, ou número de rodopios por solfejo. O índice ideal, segundo estudos apuradíssimos do Instituto de Ciências Gastronômicas de Valverdianne, Escolávia, é de 52,876 rodopios por solfejo. Mas houve um caso no ano de 1937, no sul da Lituânia, em que uma jovem donzela se encantou tanto por um singelo bife ao molho preparado pela sua metade da laranja que rodopiou à incrível marca de 682 rodopios por solfejo, marca considerada imbatível e que recebeu a impressionante média de 10,6 pontos no levantamento das placas de pontuação pelos jurados, ainda mais impressionante pelo fato da maior nota possível a cada um ser 10, o que, apesar de certo estranhamento inicial, não obteve maior repercussão diante do espetáculo dos rodopios da jovem em questão.
Dá-se, então, que é preciso ter nas mangas não apenas abotoaduras mas, principalmente, uma receita. Simples que seja, como a obtida a duras penas por meu tataravô durante expedição às ilhas geladas da Rondívia, no século 18, e guardada debaixo de sete chaves no baú da memória da família e que será posta, na próxima quarta-feira, à disposição do mundo em nome da liberdade, da igualdade, da fraternidade e do bom andamento das relações entre os sexos e entre todos os povos.
(publicado originalmente em março/2008)
09/02/2011
A primeira vez que chorei em Paris
Vamos pular etapas e chegar ao avião da Tap que sobrevoa o Atlântico a 11 mil metros de altitude. Estamos a noroeste da costa africana, é madrugada (ou seja, nem Deus, se existir, está enxergando alguma coisa) e é mais ou menos na direção de Cabo Verde ou coisa que o valha. E, acredite, nos fones de ouvido toca a Suíte Número 3 para Violoncelo, de Bach, e o avião balança muito, a ponto das belas e elegantíssimas aeroraparigas portuguesascomcerteza suspenderem o serviço de bordo (surpreendentemente bom, apesar das belas moças – bem, algumas nem tão moças nem belas, o que pouco importa - serem absolutamente sérias e pouco sorridentes) e se amarrarem com os cintos de segurança. A única coisa que pensei, numa frieza nunca dantes imaginada, foi que se tivesse de morrer em um acidente de avião que fosse, pelo menos, na volta. E que nada aconteceria porque, ora, aviões não caem quando se escuta a Suíte Número 3 para Violoncelo, de Bach.
E estamos em Lisboa, e correndo para a fila da imigração para carimbar os passaportes. Não sei você, mas na fila eu ia ficando cada vez mais nervoso, com medo de alguma coisa dar errado. Sei lá. Implicarem com alguma coisa. Faltarem documentos. Algo, não sei o que. Mas estava tudo ordem.
Um casal à nossa frente vai ao guichê. Ela, jeito de uns 40 anos, assim: vestido de onça; botas até os joelhos; absolutamente blondie; uma coisa de veludo (não sei como se chama) sobre os ombros. Ele: gringo, nem brasileiro, nem português (chute: italiano); pelo menos 60 anos; visivelemente nervoso. Ela fala com o agente da imigração algo como “mas nós nos casamos semana passada; vamos em lua de mel”. Retidos. Não embarcaram. Nossa vez. Tudo bem. Carimbo, um certo mau-humor do português. Aí, detector de metais e tal. Olha só o que acontece. “Tens notebook? Tire”. Tiro. “Remova a bateria”. Removo. “Câmera fotográfica”. Câmera. “Tire o cinto”. Tiro. “Tem um tubo na mochila. Abra”. Abro. “Perfume?”. Perfume. “Não passa”. Como assim, não passo? “Perfume. Líquido”. Mas está no limite. “Quanto tem aqui?”. Cem ml. “Como sabes que tem 100ml?”. Ora, está escrito. Silêncio. Observação acurada dos ml. “100 ml. Ok”. Ufa. Então outro diz: “Vocês vão pegar o vôo xxx para Paris?”. Sim, nós, e mais um monte de gente. “Não vão não. Está fechando”. Como é? E, olha. O aeroporto de Lisboa é enooooooooorme. O portão era o 26. Estávamos no portão 1. Vinte e seis portões de correria. Pior. Eu, sem cinto. Ela, correndo na frente. “Corre, corre!”. As calças caindo. Mochila na mão, cinto na outra, outra mala no ombro. Vinte e seis portões. As calças caindo. Pior. Sem roupas de baixo. Ué, queria ficar folgado, o que tem? Mas as calças caindo. “Portão 26, chegamos!”. Arf, arf... Pessoa no balcão: “Vão pegar o vôo xxx para Paris?”. Claro, porra! “Não vai dar. Já vão tirar as mangas”. Quem quer saber de mangas? Que merda de mangas? Correria, calças caindo, entramos no avião quase empurrando a nova aerorapariga. Umas 300 pessoas olham com cara de enfado as duas criaturas suadas e assustadas entrando. As calças caindo. O cinto em uma mão. Deu tudo certo.
Uma hora e meia depois, Paris. Muito frio. Na van a caminho do hotel, uma guia brasileira e cerca de dez pessoas, nós inclusos. Todos os outros só perguntavam sobre compras, detaxe, lojas. Nós, mudos, só olhávamos um para o outro. Estamos em Paris. Eram 5 da tarde, fazia frio e escurecia. E nós, mudos e engasgados, olhávamos pela janela para a Paris que ia surgindo cada vez mais iluminada, e olhávamos um para o outro. Quem conseguia falar alguma coisa? Estamos em Paris. Em P-A-R-I-S.
Lembro do meu avô e de mais um monte de gente. E vocês, nessa porra de van, calem a boca!Vocês não merecem estar aqui, consumistas burguesinhos do caralho! A van pára para deixar alguns deles em um hotel. Nós íamos para outro.
A porta da van fica aberta, e já é noite. Olho para fora e estamos parados em frente à Gare de Lyon. Eu digo: “olha onde a gente está. Olha onde a gente está. Puta merda, olha só onde a gente está!”.
E choro.
A título de informação
Talvez você ache um saco os posts que vou colocar, a partir de hoje, sobre Paris.
Talvez ache o autor, no caso eu, um deslumbradozinho, um intelectualzinho, um classemédiacontadordevantagensporquefoiaparisumaveznavida.
Talvez você deixe comentários críticos aí embaixo de vez em quando. Talvez você tenha ido e pensado “caramba, era só isso”?
De repente você detestou a comida.
De repente, sei lá, você simplesmente não achou a menor graça. Acho difícil, mas acontece.
Mas pode ser que você se identifique. E se arrepie, ou se emocione, ou chore, ou ria, ou sinta saudades daquela vez que você foi lá e passou três dias.
Pode ser que você lembre de como era viver em Paris quando você foi lá passar dois anos estudando. Pode ser que você ache graça de uma ou outra coisa fora de contexto, ou se sinta representado por esses posts de alguém que foi pela primeira vez
a Paris, sem ser rico, sem saber falar francês, sem fazer pose para colunas sociais e com grande possibilidade de passar perrengue em terras alheias.
Não sei o que você vai achar.
Sei que adiei ao máximo escrever esses posts, e cheguei a jurar que nem os faria. Era minha maneira de guardar, dentro de mim, os lugares, os sentimentos e alegrias e dúvidas, e risos e lágrimas. Pensei que só abriria esses sentimentos para esses que tiveram a oportunidade de ir lá e sentir o que senti. Tem gente que vai e não sente. Tem gente que vai e detesta. Tem gente que vai e morre de amores. Tem gente que vai e não volta. E tem gente que, como eu, vai e, de algum modo, mesmo que rode o mundo inteiro, nunca mais sai de lá.
Se sentir vontade, leia os posts. Você que conhece bem Paris, perdoe eventuais percepções distorcidas, releve algum momento deslumbradinho. Porque foi deslumbre, sim. Nunca um deslumbre cego. Mas um deslumbre de alguém que foi a um lugar onde sempre quis ir, mas que por quase 40 anos acreditou que nunca conseguiria.
Perdoe algum tom exageradamente condescendente, ou até mesmo delirante. Se puder, me ajude a compreender o que é Paris, e onde a Paris real se encontra com a minha Paris (todo mundo que vai passa a ter a “sua” Paris, já comprovei isso). Porque eu vi Paris nos livros, nos filmes, nas fotos, nos sonhos. E, um dia, vi Paris. Fui lá. Toquei nas paredes que antes eram devaneio, e elas existem. São reais. São de pedra. E agora são paredes-lembrança.
Sabe. Eu ainda estou lá. Voltei, mas até agora não saí de lá.
Espero que compreenda.
Foi só pra esclarecer.
*aproveito pra dizer que NÃO, NÃO será um "diário de viagem", apesar de, evidentemente, sê-lo;
**aproveito para dizer que TODAS as fotos publicadas aqui serão as que eu fiz lá, portanto não copie, não use, bláblábla;
***aproveito para pedir que você, tendo ido ou não a Paris, PARTICIPE, comente, opine, critique, sempre naquele nível a que as pessoas costumam dar o nome de "adequado";
****aproveito para dizer que faz (fazem?) 7 meses que não posto nada, e que agora, ahá, vai ter de me aturar.
12/07/2010
Pelo bem do futebol
A vitória da Espanha na Copa do Mundo é um alento. Em tempos onde praticamente todos os países abrem mão de suas características em nome de um pragmatismo que vinha dominando o cenário do futebol, é muito bom que o titulo de 2010 fique nas mãos de um time que joga não apenas um jogo dentro de seu estilo, mas vistoso, com toque de bola, com dribles, com um tipo de emoção que vai além da ?garra? e da força: vem com isso, também, a tal da força. Mas com habilidade e uma certa sensibilidade.
A Holanda da África do Sul foi uma espécie de seleção do Dunga que deu certo. Ou quase deu certo. Talvez a melhor definição tenha vindo de Paulo Vinícius Coelho, o PVC: a antiga seleção do futebol total veio disputar o título jogando o anti-futebol total. Um jogo duro, jogado com aquela palavrinha que assusta qualquer um que tenha ainda alguma crença no humanismo: foco. O jogo da Holanda era focado na força, na destruição das jogadas, e cuja maior diferença da seleção dunguista era a presença de dois bons jogadores, em forma e relativamente habilidosos: Sneijder e Robben. E ainda tem um certo Van Bommel, uma espécie de Felipe Melo loiro. Muito pouco para quem já teve Cruyjff, Resembrink e tantos outros.> Para os que dizem que a Espanha é um time de poucos gols, há que se lembrar que em praticamente todos os jogos o time espanhol jogou com um esquema que tinha prioridade na posse de bola, no toque elegante, na troca de passes, e na habilidade de jogadores como Iniesta, Xavi, Villa. Sem deixar de lado a tal da raça, sim, porque quando a habilidade não basta é preciso mesmo um pouco de força. Mas uma força que não é a força bruta e, sim, a força da determinação. Puyol, é o símbolo desse jogador que se não prima pela técnica apurada tem a tal raça, mas jogando limpo, bonito, dando gosto de se ver. Os poucos gols não retrataram a beleza de seu jogo. Mas mostrou que havia equilibrio no time. Fez poucos gols, levou menos ainda. Mas, nunca, abriu mão de jogar para a frente.
Há muito tempo uma seleção com essas características não era campeã. O Brasil em 94 foi campeão na base da força, com a diferença que tinha um gênio em campo, o baixinho Romário. Em 98, a França também não jogava com tanta habilidade, mas tinha outro gênio: Zinedine Zidane. Em 2002, de novo a Seleção Brasileira dura, mas com dois craques: Ronaldo e Rivaldo. Em 2006 a feia Itália, marcada pela brutalidade de Matterazzi. Ou seja: há tempos, bastante tempo, criou-se a impressão de que o futebol bonito não ganha mais nada. Idiotas da objetividade, morram com essa.
Para o futebol brasileiro, fica a lição espanhola. Um país que cuida de suas categorias de base, que organiza seu campeonato e sua seleção com cuidado, com critério. Um futebol que é rico, mas não é rico por acaso. É rico pela competência de seus dirigentes, e que sabe explorar, no melhor sentido da palavra, o talento de seus jogadores, mesclados com talentos que são adquiridos em outros países e que elevam a qualidade de seus jogadores, coisa que não acontece, por exemplo, na Itália. Para o futebol brasileiro, a lição de que não é preciso abrir mão de suas características, que não é preciso enclausurar seus jogadores em monastérios ou quartéis fechados. Não é preciso ser mal-educado, grosseiro, nem é preciso ter guerreiros em campo. É preciso ter craques. Para vencer no futebol, é preciso ter jogadores, esquemas táticos, técnica, habilidade.
Acabou a Copa do Mundo, e o privilégio da África do Sul é grande. Por ter possibilitado ao futebol bonito, bem jogado, renascer. A Copa de 2010, espero, será marcada pelo renascimento da arte no futebol.
O futebol do Brasil, agora, tem quatro anos para balançar sua estrutura mofada, suas convicções mesquinhas e reconstruir, no imaginário, aquilo que se perdeu. Com a consciência de que já faz tempo que não somos os melhores do mundo, mesmo tendo sido cinco vezes campeões. Que a CBF se espelhe no futebol espanhol, e deixe de tentar reinventar quem somos. Basta que se resgate o que parecia perdido, e que a Espanha acaba de mostrar que não morreu: o brilho do futebol que merece ser considerado arte, que merece ser considerado mais que uma guerra em campos de batalha.
Vem aí 2014. Dá tempo. Parabéns à Espanha, e parabéns ao futebol. Seu campeão do mundo, hoje, é digno de sê-lo. Como há muito tempo não era.
(foto do Big Picture)
08/07/2010
A banalidade do mal é uma expressão de Hannah Arendt, usada em seu livro “Eichmann em Jerusalém”. Arendt faz uma análise de Adolf Eichmann, braço direito de Hitler. Ela mostra que Eichmann não apresentava características que o enquadrassem como doentio, perverso, monstruoso. Ao contrário. Um dos grandes assassinos da história se mostrava funcionário cioso, eficiente, que obedecia, sem questionar, às ordens superiores. O que movia Eichmann era um sentimento de hierarquia burocrática, e o pronto atendimento às ordens era a forma de possibilitar sua ascenção dentro dessa hierarquia. Não havia para ele bem e mal. Considerado um monstro, ele não tinha histórico significativo de traumas ou desvios emocionais. Eichmann era, em tudo, dentro dos padrões.
E então Hannah Arendt mostra que alguns indivíduos agem dentro do sistema em que vivem movidos pelas regras consolidadas dentro desse sistema. O código interno do sistema reduz a percepção individual de bem ou mal, de certo ou errado, de moral ou imoral. Então chegamos ao caso de Eliza Samudio. E então chegamos a algumas questões. Será que o crime aparentemente cometido por um grupo de pessoas, entre eles um atleta famoso, foi cometido por monstros desprovidos de sanidade? Dentro de que sistema de valores eles agem? Porque eles julgam legítimo matar uma pessoa e, com tanta frieza, “resolver o caso” com algo tão horroroso?
Vale a pena pensar um pouco mais sobre isso. Vale a pena pensar se não estamos, todos, construindo um sistema que de alguma maneira legitima comportamentos como o dos assassinos de Eliza, os assassinos de Isabella, os assassinos de João Hélio. É fácil cair na tentação de explicações que, no fim das contas, servem mais de escapismo que de compromisso. Nem todo criminoso é monstro. Nem todo criminoso é doentio. Não é verdade que a pobreza ou a infância sofrida sejam determinantes exclusivas de padrões de comportamento criminosos. A coisa pode ir muito além disso. Mas estamos sempre acreditando que o mal é praticado por bandidos desprovidos de alma, por gente doentia. É mais fácil acreditar que alguém que comete um crime pavoroso seja alguém fora das convenções sociais do que perceber que esse monstro foi concebido dentro das normas estabelecidas por nós mesmos, ou por nossos pares, ou por nossos líderes, ou por nossos ídolos. É mais prático, mais cômodo. Mais simples. Gera menos esforço.
Outra coisa. Atitudes pequenas podem ajudar. Não custa nada pensar, por exemplo, se postar no twitter piadinhas a respeito do caso não nos torna cúmplices deste e dos próximos crimes. Porque a piadinha banaliza a crueldade do ato. A piadinha é quase um álibi que nos coloca em outro lugar no aspecto psicológico, distante do ato em si. Quanto mais distante, mais próximos de nós. Pule a piadinha. Ela é inútil. Ela é tola.
E Hannah Arendt foi tão clara. É tão necessário estarmos atentos à banalidade de atos do mal e evitar sua ocorrência. Tão necessário.
E então Hannah Arendt mostra que alguns indivíduos agem dentro do sistema em que vivem movidos pelas regras consolidadas dentro desse sistema. O código interno do sistema reduz a percepção individual de bem ou mal, de certo ou errado, de moral ou imoral. Então chegamos ao caso de Eliza Samudio. E então chegamos a algumas questões. Será que o crime aparentemente cometido por um grupo de pessoas, entre eles um atleta famoso, foi cometido por monstros desprovidos de sanidade? Dentro de que sistema de valores eles agem? Porque eles julgam legítimo matar uma pessoa e, com tanta frieza, “resolver o caso” com algo tão horroroso?
Vale a pena pensar um pouco mais sobre isso. Vale a pena pensar se não estamos, todos, construindo um sistema que de alguma maneira legitima comportamentos como o dos assassinos de Eliza, os assassinos de Isabella, os assassinos de João Hélio. É fácil cair na tentação de explicações que, no fim das contas, servem mais de escapismo que de compromisso. Nem todo criminoso é monstro. Nem todo criminoso é doentio. Não é verdade que a pobreza ou a infância sofrida sejam determinantes exclusivas de padrões de comportamento criminosos. A coisa pode ir muito além disso. Mas estamos sempre acreditando que o mal é praticado por bandidos desprovidos de alma, por gente doentia. É mais fácil acreditar que alguém que comete um crime pavoroso seja alguém fora das convenções sociais do que perceber que esse monstro foi concebido dentro das normas estabelecidas por nós mesmos, ou por nossos pares, ou por nossos líderes, ou por nossos ídolos. É mais prático, mais cômodo. Mais simples. Gera menos esforço.
Outra coisa. Atitudes pequenas podem ajudar. Não custa nada pensar, por exemplo, se postar no twitter piadinhas a respeito do caso não nos torna cúmplices deste e dos próximos crimes. Porque a piadinha banaliza a crueldade do ato. A piadinha é quase um álibi que nos coloca em outro lugar no aspecto psicológico, distante do ato em si. Quanto mais distante, mais próximos de nós. Pule a piadinha. Ela é inútil. Ela é tola.
E Hannah Arendt foi tão clara. É tão necessário estarmos atentos à banalidade de atos do mal e evitar sua ocorrência. Tão necessário.
18/06/2010
05/06/2010
"Queridos fotografos Dieci!!!!
Hoje é a abertura da mostra, fizemos a montagem ontem e as fotos ja foram vistas por um monte de gente porque aconteceu uma festa no local.
Ficou tudo muito bonito.
Vamos torcer para ir um mundaréu de pessoas e que tudo seja vendido!!!!
um beijo grande a todos
Paula França e Paolo Vitale
www.fotografosnapoli.blogspot.com
PS.
Fomos noticiados em varios jornais daqui."
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